Acontecimento II






“(...) o acontecimento não é da ordem dos corpos. E no entanto, ele não é imaterial, é sempre ao nível da materialidade que ele se torna efectivo, que ele é efeito; ele tem lugar e consiste na relação, na consistência, na dispersão, recorte, acumulação e selecção de elementos materiais, o acontecimento não é o acto nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito e numa dispersão material.”
in A ordem do discurso, M. Foucault

O trabalho aqui apresentado constitui um segundo momento da exposição Acontecimento, realizada em Outubro de 2009. Mais uma vez serão privilegiados os materiais usados na produção do trabalho, bem como elementos encontrados no espaço de exposição, que precedem a obra e que, de algum modo, são responsáveis pela sua existência.
Valorizando as características do espaço expositivo, Acontecimento II vem atribuir maior importância a um elemento encontrado, sublinhando a sua existência através de procedimentos simples.
Ambas as superfícies horizontais que delimitam o espaço (chão e tecto) são preenchidos por formas circulares. No tecto, a iluminação, os detectores de incêndio e a ventilação; formam constelações de círculos que se distribuem de forma mais ou menos regular, com diferentes tamanhos e texturas. No chão, o soalho de pinho revela pequenos círculos castanhos espalhados sobre o amarelo claro da madeira. Nesta sala, pairamos entre o reflexo destes círculos, que tão depressa nos sobrevoam como surgem sob os nossos pés.
O círculo é aqui o elemento eleito e a sua presença, por todo o espaço, viria a ser acentuada através da acumulação de novos círculos em torno dos primeiros. Escolhendo a superfície do chão como suporte, e numa gestão simples da matéria, os nós da madeira envernizada do soalho são rodeados por linhas em cordão de algodão, que repetem a sua forma reafirmando a sua existência. As espirais contornam os nós e apenas são interrompidas pelo limite de cada tábua. Estas formas ecoam a estrutura da madeira replicando a organização acidental dos nós, no entanto, no seu conjunto, revelam uma nova estrutura. É sob a forma de contaminação que o trabalho se manifesta. Absorve as qualidades do espaço, reforçando a existência destas, enquanto ganha direito à sua própria existência. Acontecimento II faz uso de um material para fazer existir outro.
A eleição de algo que já existe, como motor de produção do trabalho, faz com que o resultado seja apenas a ressonância de algo que o precede, ficando grande parte da responsabilidade da obra entregue ao acaso. As características dos materiais são determinantes para realização do trabalho, que parece exigir determinados procedimentos a fim de puder existir. Em Acontecimento II , estabelece-se uma lógica interna, um conjunto de regras que determinam o modo como o trabalho é gerado. Embora não se possa falar de uma ausência absoluta de intenções ao nível da composição, há aqui uma tentativa de negar a sua responsabilidade, transferindo-a para elementos que a precedem.


Acontecimento II toma a presença repetida de círculos no espaço como situação privilegiada e associa a repetição do acaso à repetição da regra para se constituir como obra. Os núcleos circulares da madeira, a partir dos quais reverberam linhas que ampliam e distorcem a sua forma, são agora epicentros de novas vibrações, onde a circularidade se repete formando uma nova estrutura.